We Are Pirates: Crítica por Washington Post

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Ahoy [N.T.: Expressão de linguagem típica de piratas para "olá"], pais: o novo romance de Daniel Handler, "We Are Pirates" reconta uma série de desventuras, mas não é para crianças - e não deixe a capa timbrada fantástica te enganar. Apesar do aroma do humor gótico de Lemony Snicket pairar sobre esta história de desespero da classe média-alta, é com certeza um dos livros adultos de Handler.

Quando a viagem começa, parecemos estar velejando para as águas paradas e translúcidas da sátira doméstica. Phil e Marina Needle vivem em um apartamento pelo qual não podem pagar em San Francisco, onde quase ninguém consegue pagar por um apartamento. O casamento deles chegou "ao limite da afeição de um pelo outro" mas não o percebem ainda. Eles também não percebem que a filha de 14 anos, Gwen, se tornou infeliz e fortemente entediada - eu mencionei que ela tem 14 anos? Quando o gerente de uma farmácia liga para informá-los de que ela foi pega roubando, a filha de Phil parece-lhe estranha: "Ele não sabia nada sobre uma menina que roubaria coisas de uma farmácia. Gwen não parecia poder ser essa menina. Ele imaginou um ladrão de loja, e era alguém mais glamouroso e mais metódico do que essa coisa que treme com um pé na mesa de centro e a ponta do outro no tapete, se contraindo e irritando o cachorro."

Phil não percebe o quão intensamente a sua filha deseja ser livre - das humilhações comuns do ensino médio, o grudento amor de seus pais, as restrições de suas vidas de consumo. Se ele só a escutasse, simpatizaria com ela porque sente essencialmente o mesmo desespero silencioso. Enquanto Gwen imagina ser uma garota mais alta e experiente chamada Octavia, Phil fantasia sobre colocar o cantor de blues Belly Jefferson apresentando um novo e ousado programa de rádio que "seria transmitido para todos os lugares [e] representaria o espírito fora-da-lei norte-americano." Como os norte-americanos vêm concluindo há muito tempo, não há mais territórios para descobrir, e esta é uma história sobre o quão corrosivo este espírito de fora-da-lei se torna ao fermentar no confinamento fortemente selado da vida contemporânea. Pulando entre duas histórias paralelas, Handler é tão sensível à frustração de adolescentes superprotegidos quanto ao cansaço de executivos superocupados. Acontecimentos adicionais na grande reunião da empresa de Phil oferece a Handler uma chance de satirizar o incômodo de viajar, a incompetência da secretária dele, a vaidade de seu chefe extremamente rico. Se esses não são assuntos particularmente atuais, eles são, ao menos, apresentados com o típico tom sugestivo de Handler.

Mas quem está narrando este romance?

Isto é um problema surpreendentemente complexo, que adiciona um pouco de tempero antes da história se tornar trágica. Um narrador em primeira pessoa abre a história entrando de penetra na festa de Quatro de Julho [N.T.: Data do dia de independência dos EUA] de Phil e Marina - uma alusão à morte do nosso espírito de independência - mas sua voz nunca é identificada. Em um momento, o narrador é um admirado conhecido dos Needle; em outro ele aproveita acesso livre aos pensamentos e sentimentos destes personagens. Às vezes ele está fisicamente presente; em outras, ele está relatando acontecimentos do que parecem ser décadas ou até mesmo séculos depois. A cada conjunto de páginas, ele nos lembra de que os Needle (e nós) vivemos em um momento histórico particular:

"No tempo em que esta história acontece, a ponte era chamada de Bay Bridge (ponte da baía)."

“As pessoas que tiveram a ideia se tornariam muito ricas, o que era o resultado de vencer durante esta era da história norte-americana."

“Era difícil não assistir a qualquer televisão que estivesse ligada, como sempre era durante esta era."

Essa artificialidade se torna mais e mais engraçada, mesmo que nos lembre da peculiaridade e da efemeridade de nossas próprias vidas.

Também é curioso ver que Handler colocou pitadas de comentários secos sobre comportamentos raciais no início do século XXI. Afinal de contas, “We Are Pirates” é o seu primeiro livro depois de sua problemática tarefa como apresentador dos National Book Awards (Prêmios Nacionais do Livro) em Novembro. Aquela noite foi seguindo bem o suficiente até que o seu senso de humor "piscadela-piscadela" o traiu ao criar uma "piada" de influência racista sobre Jacqueline Woodson, a autora afro-norte-americana que havia acabado de ganhar o Prêmio de Literatura Jovem. O seu comentário de mau gosto custou a ele 100,000 dólares em caridade compensatória e um elegante cutucão de Woodson alguns dias depois no New York Times.

Ele se comportou depois com remorso sincero e parece ter escapado qualquer estrago permanente à sua reputação, mas agora estas constrangidas rachaduras sobre raça em “We Are Pirates” parecem radioativas, como quando ele nos diz: "A propósito, quase todos neste livro são brancos." Depois uma mulher grita "o jeito com que a aparência de um homem negro faz tudo parecer assustador." Quando o liberal amigo dos oprimidos Phil precisa de ajuda, ele fica feliz de saber que os policiais em questão são negros. "Eles trabalhariam duro e sem cansar," ele pensa, "duas vezes mais duro, devido à injustiça." Numa cafeteria, "o cara de olhos vermelhos voltou e esticou a sua mão sobre o balcão para cumprimentar o outro cara num ritual de bater e abraçar que se acreditava ser preferido por pessoas negras na época."

Handler está fazendo algo enganoso aqui com a sua ironia característica: simultaneamente representando e tirando sarro do racismo disfarçado de uma sociedade de privlégio branco. Isto não é um aspecto significante de “We Are Pirates”, mas é uma destrutiva rota da qual ele poderia ter desviado. Durante esta era, muitos escritores brancos nunca mencionam pessoas negras - uma omissão bizarra e que distorce a realidade pela qual eles recebem poucas críticas.

Talvez isso seja um remanescente daquele espírito fora-da-lei norte-americano que tenta Handler a arriscar esses golpes satíricos. Ele pode sempre desviar, fazer de conta que tudo foi por humor - deixe para lá. Mas a sua jovem heroína, Gwen, não pode criticar a sua sociedade com tanta habilidade ou de uma posição tão segura. A sua mente isolada incha de descontentamento para a raiva. À medida que a história progride, ela é seduzida pelos velhos contos piratas que lê numa casa de repouso para idosos onde ela é forçada a fazer "trabalho voluntário" como penalidade por roubar. Quando se é um pirata, Gwen descobre, "você pode fazer qualquer coisa que quiser. Ir a qualquer lugar." Que garota adolescente não ficaria mais confiante com esta noção? "Foi esta filosofia que fez Gwen se endireitar rapidamente na cama," Handler escreve. "Um dia você vai ter tido o suficiente, e começa a levar tudo de novo."

Falta de encorajamento está presente em todo lugar quando "todo lugar" está mapeado, sendo observado e regulado. "Não há mais piratas agora," Gwen sabe - mas "ela tinha mesmo o espírito de rebelião." E em pouco tempo ela organizou um pequeno mas agitado grupo de marinheiros corajosos que vão ser "o chicote da área da Baía de San Francisco." Por alguns dias mágicos, qualquer coisa parece possível no navio bem equipado da imaginação dela.

Mas o mundo moderno é tão adepto a impedir piratas e independência de qualquer tipo. Gwen consegue "papagaiar" a linguagem salina destes contos clássicos do mar, mas quando tenta ir em sua própria aventura, ela escorrega de farsa para banho de sangue, de J.M. Barrie a Quentin Tarantino. "Os pecados do impulso" se multiplicam rapidamente nesta história sangrenta feita por pessoas jovens cujo senso de moral foi infectado com "o terrível grito da vingança."

Esta é a tragédia que Handler transmite neste obscuro e divertido romance: Sim somos piratas, mas estamos acorrentados a terra estéril. Alguma vez este tema já foi explorado com esta estranha mistura de inteligência maligna e simpatia branda?

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